sábado, 7 de julho de 2012

Eu neguinha ou sobre o politicamente correto do Bial


Quarta-feira passada, na casa de uma amiga, vendo a final da Copa Libertadores da América (sem o nome do banco patrocinador) entre Corinthians e Boca Juniors, conversávamos sobre as confusões que podem ocorrer dentro do campo de futebol entre os jogadores. A tela da TV mostrava o jogador Emerson, do Corinthians, respondendo a uma provação com um gesto, como se dissesse “beija aqui”.  

Lembramos, nós que gostamos de esporte, dos jogos entre Brasil e Cuba no vôlei feminino (Atlanta 1996), quando a rede – que supostamente separava os dois times – virou palco para uma batalha “campal” entre brasileiras e cubanas. Referiu-se ao episódio um amigo:
“aquelas negas são foda!” e rapidamente, olhou para mim e perguntou “o que você acha disso que eu falei ‘aquelas negas são foda!’?

Eu respondi: “Não achei nada. Acho que elas são foda mesmo!”

Como vocês podem ver, esse post nada tem a ver com o esporte, não fosse ele gerado a partir de uma conversa durante um jogo de futebol. Ele, na verdade, vem tratar do preconceito nosso de cada dia. Bem da verdade, não senti absolutamente nada com o comentário do meu amigo; sem hipocrisia. Não vejo problemas em chamar os negros de negros ou “negos”, no palavreado comum. Não me importo de ser chamada por meus amigos de “nega”, que muitas vezes é uma forma carinhosa de tratamento. E, não comungo de um policiamento linguístico que, muitas vezes, na pretensão de garantir o politicamente correto, não leva em consideração a etimologia da palavra, ou seja, sua origem e sua história na historia do discurso social. Uma coisa é evitar palavras como “denegrir”, outra bem diferente, é evitar termos como “clarear”, que em nada tem a ver com a cor e sim com o par antagônico claro x escuro.

O programa Na Moral, apresentado pelo jornalista Pedro Bial, e que estreou na última sexta-feira, dia 6 de julho, tentou fazer um debate – “sem papas na língua” – sobre a questão do politicamente correto. O músico Alexandre Pires esteve no programa para dar seu testemunho sobre seu clip recentemente lançado e, posteriormente acionado pelo Ministério Público por ter, supostamente, incitado o racismo ao colocar homens vestidos de gorilas. Não vou falar do clip, pois acho que desse muita gente já falou. Se posso aqui empenhar alguma opinião, vou em direção daquela que já foi dita e redita por aí: “não é racista, mas é esteticamente de mau gosto” e como o gosto, muitos acreditam, não pode ser discutido, não vou me debruçar na discussão sobre esse. Além disso, comungo da opinião feminista, pois “o vídeo coloca as mulheres, mais uma vez, na posição de objeto sexual”. É, portanto, machista.

Na linha da discussão do politicamente correto, me chamou a atenção o fato de o apresentador do programa ter colocado a questão como se fosse algo que vitimasse as pessoas. “Será que estamos sendo vítimas do politicamente correto?”, perguntou ele durante o programa. E “você é vítima da ditadura do politicamente correto?” é a pergunta que estampa a parte interativa do programa no site da Globo.com.

A minha pergunta vai numa outra direção “afinal, quem é vitima do quê nesta arenga?”.

Bom, eu não acho que “as leis devam prever a linguagem dos jornais” (essa é outra pergunta feita no site do programa para avaliar se você é vitima da tal ditadura), porém, acho que temos que ter, garantidas em leis, formas de nos defendermos sim, de possíveis “usos da linguagem no jornal”.  Afinal, por que o nome de Carlinhos Cachoeira foi precedido do atributo profissional “empresário” no jornal Folha de São Paulo de 27.06.2012 e o nome do meu primo Arthur Junior foi procedido pela expressão “vulgo Juninho”, quando ele, em 2004, morreu por afogamento no Estado Espírito Santo? O que impõe a escolha dessa ou daquela palavra? O que determina que um repórter, apresentador ou pessoa comum utilize essa ou aquela expressão para se remeter a um fato ou pessoa?

Parece que, no entendimento colocado pelo programa, as palavras e expressões são meros usos corriqueiros da linguagem, não estando elas ligadas a nenhuma concepção de mundo, a nenhuma disputa por posição e por poder nesse mundo. Pero, caros amigos, há um engano nessa pretensão de que as palavras são vazias, transparentes, ou meras representantes abstratas de algo. A palavra, como já diria o filósofo Mikhail Bakhtin, “é a arena onde se confrontam os valores sociais contraditórios”.

O fato de eu aceitar – e gostar – de ser chamada de “negra”, “nega” ou “neguinha” por pessoas próximas e amigos não significa que as mesmas palavras, ditas em outro tom e em outras condições de discurso, sejam aceitas por mim da mesma forma. Na verdade, essas palavras são ressignificadas por mim dia-a-dia e dependem sim do tom e da posição de quem as imputa. E, ainda bem que existem leis que me garantem o direito de reagir aos discursos ofensivos!

As leis estão aqui para nos propiciar – sem recair em censura prévia, é claro – a garantia de que a nossa linguagem não vá ser usada como arma a favor do preconceito e da violência, como, aliás, foi durante muito tempo. Em outras palavras, instituir “como ditadura” o politicamente correto é sombrear o debate, ao invés de torná-lo mais claro (claro sim, no sentido de lúcido, esclarecido).  Se é pra falar de vitimização: é menos vítima quem detém a palavra do que quem é alvo dela, pois as posições de fala estão sempre vinculadas às posições de poder estabelecidas em qualquer sociedade.