segunda-feira, 10 de março de 2008

Sem contraponto

Falta de heterogeneidade enunciativa transforma Jornal da Globo no principal porta voz da elite conservadora brasileira

A palavra contraponto é comum entre os que participam de algum tipo de debate político. Ela refere-se ao verbo contrapor. Em expressão, “fazer contraponto” significa segundo o português, confrontar, opor, por em paralelo, apontar o outro lado dos fatos. Infelizmente este tipo de exercício tem sido cada vez mais abolido do nosso jornalismo televisivo diário. Não se trata aqui, porém, de resgatar o já superado debate sobre imparcialidade jornalística. Qualquer estudioso do tema, ou espectador atento, sabe que não é possível ser imparcial em uma notícia jornalística, uma vez que, existem estruturas (ou habitus) empresariais, ideológicas e subjetivas de jornalistas e editores, que condicionam a ação dos atores sociais e que são condicionadas, incorporadas e reproduzidas por elas. Por outro lado, a deontologia jornalística prevê que um fato noticioso precisa abordar visões dissonantes. É preciso fazer o contraponto.

O preâmbulo serve para preparar o campo para o debate sobre o que tem sido ultimamente o Jornal da Globo, que vai ao ar por volta das 24 horas, de segunda a sexta-feira, e que carrega em seu slogan o nome da emissora no qual está inserido. Nome que, aliás, já sugere o teor de sua linha editorial. Isso é, o jornal não é Nacional, muito menos tem em seu nome referencias a qualquer estado. Ele é, antes de tudo, o porta voz da Globo.


Desde a entrada do jornalista William Waack como âncora, em maio de 2005, muitas mudanças foram percebidas. Mas nenhuma tão gritante quanto a falta de contraponto. Não há comentários dissonantes. Ancora, críticos e especialistas estão sempre concordando. Até as alfinetadas que outrora Ana Paula Padrão dava em Arnaldo Jabor – como aquela em que a apresentadora chamou o comentarista de machista por taxar Camila Parcker (atual esposa do príncipe Charles) de “mocréia sexy” – foram extintas. O comentário não foi lá muita coisa, mas pelo menos exibiu divergências éticas entre os “arautos” do jornalismo brasileiro.


Com a emergência do conflito na América do Sul, entre Equador, Colômbia e Venezuela – causado pela invasão militar pela Colômbia do território do Equador no dia 1º de março – o âncora William Waack não poupou críticas nem cinismo. No dia 3 de março ele abriu a reportagem sobre o tema com a seguinte pergunta “é errado invadir a casa do seu vizinho, mas e se esta invasão fosse feita para pegar um ladrão?”.

Na escalada ele ainda usou o termo narcoguerrilha para se referir as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Uso que, aliás, tem se tornado corriqueiro entre os jornalistas televisivos. Essa é uma tentativa de atribuir à guerrilha papel preponderante na produção, refino e tráfico de drogas colombianas, eximindo o Estado do controle que esse deveria exercer sobre o tráfico. Waack ressalta, ainda no início da reportagem, o rompimento das relações internacionais entre Equador e Colômbia e mostra o suposto envolvimento dos governos equatoriano e venezuelano com as FARC. Tal envolvimento foi denunciado pelo próprio governo colombiano, que afirmou ter encontrado no acampamento das FARC no Equador, o computador pessoal de Raul Reyes – 2º homem das FARC morto na operação. Em tal computador estaria um conjunto de arquivos e documentos que o governo da Colômbia diz ser a prova das ligações entre os governos do Equador e da Venezuela com as FARC. Ninguém questionou, no entanto, como um computador poderia ter sido encontrado intacto num acampamento que segundo a Força Aérea Colombiana foi totalmente destruído. Ninguém explicou que tipo de arma foi capaz de matar os guerrilheiros, deixando equipamentos eletrônicos intactos. E a invasão do território equatoriano foi sendo diametralmente substituída pelo suposto envolvimento do Hugo Chávez e Rafael Correa com as FARC, a quem teriam doado quantias superiores a 300 milhões de dólares.

A mesma reportagem foi encerrada com um comentário de Arnaldo Jabour, intitulado “Querem que o Paquistão seja aqui”. Entre outras coisas ele afirmou que “o problema todo é a herança sagrada de Lenin. O Mao Tsé-Tung matou milhões, Stalin mais ainda, mas ainda há uma pretensa “santidade” nos socialistas. As FARC não se escondem na floresta, se escondem atrás do mito da revolução.”

Por acaso o Paquistão tem sido uma espécie de referência no Jornal. Na quarta-feira, dia 4 de março, a apresentadora Christiane Pelajo comparou as cenas de uma ação da Polícia Federal no Paraná com as cenas de conflito bélico no Paquistão. Comparações como essa não apenas espetacularizam a notícia, como também servem para criar um certo clima de terror naqueles que a assistem. É cada vez mais lúcida a idéia de que quanto maior o clima de terror na sociedade brasileira, mais fácil ultrapassar os limites da ética e dos direitos humanos com a aprovação de ações públicas de repressão e extinção da criminalidade, ou seja, dos criminosos.

Mas, retornado ao conceito de contraponto, o termo também é definido nos dicionários como “a disciplina que ensina a compor polifonia” ou a “própria polifonia”, uma multiplicidade de vozes ou melodias. Nas Ciências da Linguagem, o russo Mikhail Bakhtin usou o termo polifonia para analisar a multiplicidade de vozes presentes num discurso, uma vez que o próprio autor do discurso está inserido num contexto que o influencia previamente.

Infelizmente no caso do Jornal da Globo, tanto apresentadores, quanto comentaristas e especialistas parecem emergir de um mesmo contexto. Ou seja, as diversas vozes aqui presentes são inúteis já que elas não se constituem em pontos de vista contraditórios. Não há heterogeneidade enunciativa. E se consideramos, tal qual Bakhtin que “enuncia-se sempre para alguém de um determinado lugar ou de uma determinada posição sócio-histórica”, podemos deduzir a quem se destina tal Jornal.

Sem contraponto o Jornal da Globo segue hegemonizando o pensamento e criando consensos entre os espectadores. Afinal um Jornal que vai ao ar em tal horário, e que, na maioria das reportagens propõe maior profundidade de análise do que os demais jornais que costumam noticiar com pílulas factuais, tem um público alvo bem definido. Nesse caso composto por empresários, investidores, intelectuais, profissionais liberais e boa parte da classe média “esclarecida”. Com exceção daqueles que conseguem ainda assistir ao noticiário com um olhar crítico, todo o resto aparentemente com um pé no conservadorismo.