Durante quatro anos, Mirian
Fichtner fez uma imersão no tema, que resultou no projeto Cavalo de Santo -
Religiões Afro-Gaúchas
Um olhar
apressado para as fotos desta página poderia fazer o leitor pensar que se trata
de manifestações religiosas afro-baianas. Cariocas ou maranhenses, talvez. Mas
não, as imagens retratam uma faceta menos conhecida do Rio Grande do Sul, cuja
identidade primeira sempre foi branca e europeia.
Desconhecida
até mesmo da autora do trabalho, a fotógrafa gaúcha Mirian Fichtner, 50 anos.
Durante quatro anos, ela fez uma imersão no tema, que resultou no projeto
Cavalo de Santo - Religiões Afro- Gaúchas, formado por exposição, livro e um
documentário ainda em produção.
Uma das imagens da mostra Cavalo de Santo, da fotógrafa Mirian Fichtner, que será aberta quinta, no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira |
Depois
de passar por Porto Alegre e Rio de Janeiro, a exposição chega a Salvador, ao
Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, na Rua do Tesouro, Centro. A
abertura, para convidados, será quinta, com a presença de Mirian
e de algumas das autoridades religiosas retratadas no projeto.
Invisibilidade
Mirian
atentou para o universo ancestral afro-gaúcho a partir de um texto sobre o
Censo 2000. Segundo o IBGE, o RS é o estado que concentra o maior número de
terreiros (30 mil) e de adeptos declarados de religiões de origem africana no
país, com um total de 1,62% da população. Estão lá as 14 cidades com mais
seguidores do candomblé e da umbanda, ficando Itaparica, na Bahia, no 15º
lugar. Os dados foram ratificados em
2010.
“Minha
primeira reação foi pensar: ‘Que estranho, sou de lá e nunca percebi isso’”,
conta Mirian, radicada no Rio há 25 anos e com passagens por veículos como
Veja, O Globo e IstoÉ. Foi o start para ela se aprofundar no assunto, a partir
de 2005. Juntamente com o marido, o jornalista Carlos Eduardo Caramez, a
fotógrafa mapeou cem casas religiosas, visitou 30 e fechou com as 15 mais
tradicionais, que passou a acompanhar.
Cavalo
de Santo mostra em fotos vigorosas como estas manifestações acontecem, suas
características mais marcantes e personagens importantes. Nomes como a ialorixá
Mãe Graça de Oxum, da cidade de Rio Grande, que teve a casa fechada em 2003 e
iniciou uma batalha contra a intolerância religiosa. Localizada no Extremo Sul,
a cidade portuária foi porta de entrada
dos negros no estado.
Costela e polenta
Além do
Rio Grande, Pelotas e Região Metropolitanta de Porto Alegre concentram os terreiros
gaúchos. Por lá, o culto aos orixás se chama Batuque ou Nação, que reúne o
panteão religioso de nações como angola, gegê-nagô e cabinda. Entre diferenças
e aproximações com a Bahia, é curioso ver, por exemplo, uma costela de boi
entre as oferendas pra Ogum. Ou polenta e batata, misturados à pipoca e farofa.
Os orixás cultuados, afirma pai Cleon de
Oxalá, 72, são basicamente os mesmos daqui. À frente da casa Reino de Oxalá –
que já tem mais de 50 anos –, Pai Cleon representa a tradição cabinda.
Elogiando o trabalho de Mirian, que achou “ótimo”, ele só faz uma ressalva em
relação às fotos que mostram sacrifício de animais.
“Acho
que não precisava, porque ainda tem muito preconceito e pode chocar algumas
pessoas”, diz. Realizadas no Ilê dos Orixás, as imagens, diz Mirian, foram
devidamente autorizadas pelo líder da casa. “Nunca transgredi o ponto de vista
religioso, mas faz parte da cultura”, pontua Mirian, que incluiu as fotos no
livro, mas não na exposição.
Mãe Graça de Oxum no porto de Rio Grande. Cidade no extremo sul foi porta de entrada dos negros no RS |
Calada
da noite
Além do
Batuque, a fotógrafa registrou manifestações da umbanda – com seus caboclos e
pretos velhos – e da linha cruzada ou quimbanda, que cultua exus, pombagiras e
ciganos. Parte das fotos foi feita em
festas públicas como a de Oxum, em 8 de dezembro, que reúne milhares de pessoas às margens do rio
Guaíba.
“Quase
todas as festas são realizadas à noite ou na madrugada, o que reflete ainda uma
grande discriminação”, afirma. Por conta disso, continua, teve que encontrar
soluções criativas para trabalhar com pouca luz. As principais fontes de
inspiração foram os trabalhos dos fotógrafos Pierre Verger (1902-1996) e José
Medeiros (1921-1990).
As
dificuldades técnicas não foram as únicas de Mirian. Ela bancou com recursos
próprios seu projeto, já que nenhuma grande empresa gaúcha topou patrocinar
a ideia (grifo nosso). “O preconceito é muito forte, mas o povo de santo me
acolheu de forma muito carinhosa”, afirma.
Documentário
marca nova fase do projeto
Para a
versão baiana de Cavalo de Santo, Mirian escolheu 25 fotos, que são
apresentadas num tamanho grande ( 77 cm x
1, 03 m). As imagens também ganham projeção num telão em alta definição,
acompanhadas de sons que embalam os rituais. Em Salvador, Mirian também venderá
as imagens expostas (com valores de R$ 750 a R$ 1 mil) e uma série de pôsteres
(R$ 25). Parte da renda será revertida para os terreiros gaúchos.
“Priorizei a plasticidade das fotos”, diz Mirian,
acrescentando que usa a cor como um forte elemento expressivo. Dando sequência
ao projeto Cavalo de Santo, ela está
preparando um documentário, para o qual está entrevistando vários religiosos
gaúchos.
Mirian
também pretende lançar uma segunda edição do livro - que está esgotado -,
trabalho vencedor do II Prêmio Nacional de Expressões Afro-Brasileiras,
concedido pelo Cadon/MinC/Petrobras no
ano passado.
Fotos: Mirian Fichtner
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Nota do
Blog: É interessante perceber, primeiro, que essa matéria revela o quanto
conhecemos pouco nossos “brasis”. Eu mesma só fui me atentar para uma relevante
população negra no Rio Grande do Sul (1.725.711 pelo CENSO 2010 são pardos e
negros - 16,14%, da população) quando por conta da participação de um negro no
movimento estudantil de Comunicação entre os anos de 2003-2005.
Depois
disso, é claro, não apenas descobri que o Estado sulista tinha uma grande
população de origem afro-brasileira, como também percebi que lá, as religiões
de matriz africana eram bem estruturadas e combativas (foi no Estado do Rio
Grande do Sul que pela primeira vez se obteve na Justiça o direito ao
sacrifício de animais em ritos religiosos de matriz africana).
A
matéria acima traz à tona esse desconhecimento e, quando não, nosso preconceito
quanto a isso. O desconhecimento é reiterado pela própria fotógrafa que, ao
descobrir a quantidade de terreiros no Estado sentiu-se impelida – eu diria
positivamente obrigada – a fotografar e retirar da invisibilidade essa
manifestação religiosa no Rio Grande do Sul; e o preconceito, posto à tona,
pela falta de patrocínios revelados pela fotógrafa.
De uma
certa forma parece que os possíveis patrocinadores do Rio Grande do Sul não
veem relevância em [des]cobrir essa outra identidade sulista, que
cotidianamente nos é encoberta pela repetição [enfadonha, eu diria] de que no
Sul existem apenas descendentes de alemães. Logo, apenas as práticas ditas, de
origem europeia, preservam o privilegio de serem patrocinadas e exploradas
comercialmente enquanto identidade daquele povo. Uma pena!