terça-feira, 17 de julho de 2012

Fotógrafa registra expressivo mundo religioso gaúcho de origem negra


Durante quatro anos, Mirian Fichtner fez uma imersão no tema, que resultou no projeto Cavalo de Santo - Religiões Afro-Gaúchas

Um olhar apressado para as fotos desta página poderia fazer o leitor pensar que se trata de manifestações religiosas afro-baianas. Cariocas ou maranhenses, talvez. Mas não, as imagens retratam uma faceta menos conhecida do Rio Grande do Sul, cuja identidade primeira sempre foi branca e europeia.

Desconhecida até mesmo da autora do trabalho, a fotógrafa gaúcha Mirian Fichtner, 50 anos. Durante quatro anos, ela fez uma imersão no tema, que resultou no projeto Cavalo de Santo - Religiões Afro- Gaúchas, formado por exposição, livro e um documentário ainda em produção.

Uma das imagens da mostra Cavalo de Santo, da fotógrafa Mirian Fichtner, que será aberta quinta, no Museu  Nacional da Cultura Afro-Brasileira
Depois de passar por Porto Alegre e Rio de Janeiro, a exposição chega a Salvador, ao Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, na Rua do Tesouro, Centro. A abertura, para convidados, será quinta, com a presença  de Mirian  e de algumas das autoridades religiosas retratadas no projeto.

Invisibilidade

Mirian atentou para o universo ancestral afro-gaúcho a partir de um texto sobre o Censo 2000. Segundo o IBGE, o RS é o estado que concentra o maior número de terreiros (30 mil) e de adeptos declarados de religiões de origem africana no país, com um total de 1,62% da população. Estão lá as 14 cidades com mais seguidores do candomblé e da umbanda, ficando Itaparica, na Bahia, no 15º lugar.  Os dados foram ratificados em 2010.

“Minha primeira reação foi pensar: ‘Que estranho, sou de lá e nunca percebi isso’”, conta Mirian, radicada no Rio há 25 anos e com passagens por veículos como Veja, O Globo e IstoÉ. Foi o start para ela se aprofundar no assunto, a partir de 2005. Juntamente com o marido, o jornalista Carlos Eduardo Caramez, a fotógrafa mapeou cem casas religiosas, visitou 30 e fechou com as 15 mais tradicionais, que passou a acompanhar.

Cavalo de Santo mostra em fotos vigorosas como estas manifestações acontecem, suas características mais marcantes e personagens importantes. Nomes como a ialorixá Mãe Graça de Oxum, da cidade de Rio Grande, que teve a casa fechada em 2003 e iniciou uma batalha contra a intolerância religiosa. Localizada no Extremo Sul, a cidade portuária  foi porta de entrada dos negros no estado.

Costela e polenta

Além do Rio Grande, Pelotas e Região Metropolitanta de Porto Alegre concentram os terreiros gaúchos. Por lá, o culto aos orixás se chama Batuque ou Nação, que reúne o panteão religioso de nações como angola, gegê-nagô e cabinda. Entre diferenças e aproximações com a Bahia, é curioso ver, por exemplo, uma costela de boi entre as oferendas pra Ogum. Ou polenta e batata, misturados à pipoca e farofa.  

Os orixás cultuados, afirma pai Cleon de Oxalá, 72, são basicamente os mesmos daqui. À frente da casa Reino de Oxalá – que já tem mais de 50 anos –, Pai Cleon representa a tradição cabinda. Elogiando o trabalho de Mirian, que achou “ótimo”, ele só faz uma ressalva em relação às fotos que mostram sacrifício de animais.

“Acho que não precisava, porque ainda tem muito preconceito e pode chocar algumas pessoas”, diz. Realizadas no Ilê dos Orixás, as imagens, diz Mirian, foram devidamente autorizadas pelo líder da casa. “Nunca transgredi o ponto de vista religioso, mas faz parte da cultura”, pontua Mirian, que incluiu as fotos no livro, mas não na exposição.

Mãe Graça de Oxum no porto de Rio Grande. Cidade no extremo sul foi porta de entrada dos negros no RS

Calada da noite 

Além do Batuque, a fotógrafa registrou manifestações da umbanda – com seus caboclos e pretos velhos – e da linha cruzada ou quimbanda, que cultua exus, pombagiras e ciganos.  Parte das fotos foi feita em festas públicas como a de Oxum, em 8 de dezembro, que  reúne milhares de pessoas às margens do rio Guaíba.

“Quase todas as festas são realizadas à noite ou na madrugada, o que reflete ainda uma grande discriminação”, afirma. Por conta disso, continua, teve que encontrar soluções criativas para trabalhar com pouca luz. As principais fontes de inspiração foram os trabalhos dos fotógrafos Pierre Verger (1902-1996) e José Medeiros (1921-1990).

As dificuldades técnicas não foram as únicas de Mirian. Ela bancou com recursos próprios seu projeto, já que nenhuma grande empresa gaúcha topou patrocinar a ideia (grifo nosso). “O preconceito é muito forte, mas o povo de santo me acolheu de forma muito carinhosa”, afirma.

Documentário marca nova fase do projeto

Para a versão baiana de Cavalo de Santo, Mirian escolheu 25 fotos, que são apresentadas num tamanho grande ( 77 cm x  1, 03 m). As imagens também ganham projeção num telão em alta definição, acompanhadas de sons que embalam os rituais. Em Salvador, Mirian também venderá as imagens expostas (com valores de R$ 750 a R$ 1 mil) e uma série de pôsteres (R$ 25). Parte da renda será revertida para os terreiros gaúchos.

“Priorizei  a plasticidade das fotos”, diz Mirian, acrescentando que usa a cor como um forte elemento expressivo. Dando sequência ao projeto Cavalo de  Santo, ela está preparando um documentário, para o qual está entrevistando vários religiosos gaúchos.

Mirian também pretende lançar uma segunda edição do livro - que está esgotado -, trabalho vencedor do II Prêmio Nacional de Expressões Afro-Brasileiras, concedido pelo Cadon/MinC/Petrobras  no ano passado.

Fotos: Mirian Fichtner
Texto: Ana Cristina Pereira (ana.pereira@redebahia.com.br)
Fonte: Correio da Bahia (http://migre.me/9W4oC)

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Nota do Blog: É interessante perceber, primeiro, que essa matéria revela o quanto conhecemos pouco nossos “brasis”. Eu mesma só fui me atentar para uma relevante população negra no Rio Grande do Sul (1.725.711 pelo CENSO 2010 são pardos e negros - 16,14%, da população) quando por conta da participação de um negro no movimento estudantil de Comunicação entre os anos de 2003-2005.

Depois disso, é claro, não apenas descobri que o Estado sulista tinha uma grande população de origem afro-brasileira, como também percebi que lá, as religiões de matriz africana eram bem estruturadas e combativas (foi no Estado do Rio Grande do Sul que pela primeira vez se obteve na Justiça o direito ao sacrifício de animais em ritos religiosos de matriz africana).

A matéria acima traz à tona esse desconhecimento e, quando não, nosso preconceito quanto a isso. O desconhecimento é reiterado pela própria fotógrafa que, ao descobrir a quantidade de terreiros no Estado sentiu-se impelida – eu diria positivamente obrigada – a fotografar e retirar da invisibilidade essa manifestação religiosa no Rio Grande do Sul; e o preconceito, posto à tona, pela falta de patrocínios revelados pela fotógrafa.

De uma certa forma parece que os possíveis patrocinadores do Rio Grande do Sul não veem relevância em [des]cobrir essa outra identidade sulista, que cotidianamente nos é encoberta pela repetição [enfadonha, eu diria] de que no Sul existem apenas descendentes de alemães. Logo, apenas as práticas ditas, de origem europeia, preservam o privilegio de serem patrocinadas e exploradas comercialmente enquanto identidade daquele povo. Uma pena!


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