domingo, 9 de setembro de 2012

Aos 70, Dorothy Counts relembra a experiência de ser a 1ª menina negra em um colégio de Charlotte


Dorothy Counts tinha 15 anos quando se tornou a primeira menina negra no colégio Harding, em Charlotte, sul dos EUA. Era 4 de setembro de 1957, e a cidade tentava a integração racial.

Por cinco dias, ela resistiu a pedras, cuspe e insultos. A provação a levaria a dedicar a vida à educação e viraria uma das imagens mais poderosas na luta por direitos civis que culminaria em Barack Obama.

Eu ainda lembro daqueles dias. Tinha 15 anos, mas não é algo que vá esquecer. É parte da minha vida.

Antes daquele dia, minha família teve uma discussão sobre eu entrar em Harding. Meus pais inscreveram eu e dois dos meus três irmãos, mas só eu fui escolhida --meu irmão [mais velho] foi para a Escola Central de Charlotte.

Foram cinco famílias escolhidas; quatro decidiram ir adiante. Eu era a única menina [negra] em Harding.

Meu pai era professor na Universidade Johnson C. Smith [majoritariamente negra] e pastor. Minha mãe se formou na faculdade mas era dona de casa, e na minha adolescência foi supervisora de um dormitório escolar.

Durante anos, conversamos sobre uma boa educação, algo muito importante na minha família, e igualdade. Quando eles foram abordados para nos inscrever, hesitaram, mas conversaram conosco sobre o que aconteceria. Era parte de um processo, sabíamos que alguém tinha de fazer, e avançamos.

Eu tinha ido a uma conferência mundial da juventude presbiteriana em Iowa, e tinha sido boa uma boa experiência, a minha primeira em um mundo não-segregado.

Por isso, quando voltei e soube que tinha sido aceita em Harding, não pensei muito a respeito. Mas coisas tinham ocorrido antes do primeiro dia de aula, e meus pais não me contaram, porque não queriam que eu chegasse à escola com medo. Falamos só sobre como eu devia me comportar.

O primeiro dia

Quando meu pai me levou naquela manhã, um de seus amigos da universidade, o dr. Thompson, nos acompanhou-- é ele, naquela foto [a icônica foto em que Dorothy é cercada por colegas agressores]. A rua estava bloqueada, e meu pai tinha ido procurar onde estacionar. Quando eu vi toda aquela gente, não pensei no que poderia acontecer. Eles tinham sabido pelo jornal que quatro estudantes [negros] tinham sido selecionados para escolas predominantemente brancas.

Dorothy em 1942.
Em Harding havia uma mulher que fundou um tal de Conselho Branco e que pediu às pessoas que impedissem que a integração acontecesse. Ela estava lá no meu primeiro dia, e ela incentivou os alunos a me impedirem de entrar, a me cuspirem. Na foto não há só alunos, há adultos. E há crianças menores que foram lá só para isso.

Mas por causa das conversas como meus pais, meus avós, eu sabia que estava lá por uma razão. Mantive minha cabeça erguida e entrei.

Os alunos fizeram o que a mulher pediu. Eram adolescentes, quando começam é difícil parar. Quando entrei, sentei sozinha no auditório. Muito do que fizeram comigo foi pelas minhas costas. Ninguém me orientou. Eu então fui chamada a sentar com os colegas da minha classe, mas não teve nenhuma orientação especial da diretoria.

Não houve preparação da diretoria para aquele dia, e isso fez diferença [em relação a outras escolas integradas].

O diretor tinha dito ao meu pai que não sabia o que aconteceria comigo. Ele nunca fez nada, mesmo vendo o que acontecia. Meu armário era perto da sala dele, e muita coisa me aconteceu naquele corredor. Ele nunca interveio.

Nem os professores. O lugar que me coube foi no fundo da sala. Eu levantava a mão, ninguém me chamava. Eu não sabia o porquê.

Cinco dias

Fiquei lá quatro dias --- na verdade, cinco. Em cada um deles, ao voltar para casa, meus pais me perguntavam como tinha sido, eu lhes relatava, e meu pai me perguntava se eu queria voltar.

Eu dizia que sim, pois achava que o dia seguinte seria melhor e perceberiam que eu era como eles, só a cor da pele era outra. Só uma adolescente que queria estudar.

No meu penúltimo dia, aconteceu um incidente na cantina. Fui cercada por uns garotos que cuspiram na minha comida. Naquele dia, perguntei aos meus pais se eles poderiam passar a me buscar para almoçar em casa, já que a escola permitia.

Mas quando estava mexendo no meu armário, pela primeira vez, eu senti a violência física. Empurrões e xingamentos eu podia aguentar. Mas ali senti algo me atingir nas costas e na nuca. Nas costas foi um apagador; na cabeça eu não sei. Mas era afiado.

Na saída, vi meu irmão esperando no carro e, pela primeira vez, tive medo. O vidro de trás estava estilhaçado.

Aí percebi que não era só eu o alvo, era minha família.

Contei naquele dia aos meus pais o acontecido. Meu pai disse que sabia o que eu responderia, e ligou para a polícia e para o superintendente das escolas. Isso provavelmente foi o que o levou a me tirar de Harding, porque o superintendente lhe disse que não estava sabendo de nada, que indagara à escola e ninguém lhe dissera que eu tinha tido problemas.

Eu estava lá para receber educação, e não era isso que estava acontecendo.

Segregação

Em Charlotte, havia segregação. Sentíamos no dia-a-dia, mas era a norma. Crescemos assim. Não questionávamos. É irônico, porque eu morava nesse bairro [formado principalmente pelas famílias de professores negros da universidade], não muito longe desta casa --e por isso quis mudar de volta para cá há dez anos. Meus amigos eram os vizinhos. Sabíamos que não podíamos ir a alguns cinemas, nem a todos os restaurantes, e não podíamos nos hospedar em muitos hoteis.

Sabíamos disso, não achávamos certo, mas era a norma. Só que o que aconteceu naqueles dias na escola nunca tinha me acontecido antes. Havia brancos aqui no bairro, mas eram de classe baixa -- os negros eram de classe média, média alta, por causa da universidade-- e eram eles que iam a Harding.

Um ano antes do evento que marcou os 50 anos daquele episódio, em 2007, eu conheci um dos meninos na foto. O avô dele era policial, ele me contou como foi criado.

Eram dois mundos diferentes. Ficamos amigos, Woody Cooper. Algumas pessoas se aproximaram de mim na época do evento, mas Woody foi quem continuou meu amigo.

Eu lhe dizia que crescemos em culturas distintas, e que era o momento certo de fazermos [os negros] o que fizemos, mas eles [os brancos] não estavam preparados. Era cedo, era um teste em Charlotte. Fazia só três anos que a Justiça federal tinha declarado a segregação nas escolas inconstitucional.

Depois daquilo, a integração foi adiada por três anos. Foi um vexame na cidade, a foto [do primeiro dia de aula] rodou o mundo. Mas isso despertou um debate sobre como melhorar as coisas aqui. E as coisas melhoraram. Meus filhos estudaram em escolas públicas aqui, e era muito melhor porque havia o transporte escolar para alunos de outras comunidades, para que as escolas não fossem homogêneas.

Quando isso acabou, muitas escolas passaram a ser frequentadas só por crianças negras e latinas, por conta do lugar onde vivem. Elas recebem menos recursos, um tratamento de segunda classe.

Formação

Eu me formei em psicologia. Quando terminei a faculdade, sabia que queria fazer algo para ajudar famílias. Trabalhei como assistente social por um ano em Nova York, depois fui para uma pré-escola, e foi assim que passei a trabalhar com educação infantil e voltei para Charlotte.

Depois [do incidente], passei um ano na Filadélfia com meus tios, para frequentar a escola lá. Meus pais achavam importante eu ir a uma escola integrada para não ficar com a impressão que todo mundo era como em Harding.

Depois desse ano, meus pais me puseram em um colégio interno em Ashville, no oeste da Carolina do Norte. Era uma escola da Igreja Metodista para meninas, onde as alunas eram negras mas os professores eram mistos.

Quando resolvi estudar na Johnson C. Smith, aqui, meus pais se surpreenderam. Mas eu estava longe de casa havia três anos, e nós éramos uma família unida. Queria estar aqui.

Depois de me formar, em 1964, fui para Nova York, onde arrumei um emprego no departamento social. Meu primeiro trabalho foi em um abrigo para crianças abandonadas e abusadas.

Depois dei aulas em uma escola infantil, e voltei a Charlotte de novo.

Minha experiência em Harding moldou minha vida. Aos 15, decidi que o que fosse que fizesse, seria para garantir que nenhuma outra criança passasse pelo que eu passei. E as coisas que fiz nos meus mais de 50 anos trabalhando foram nesse sentido. Fui professora infantil, dirigi programas de educação e trabalhei com uma organização sem fins lucrativos, da qual me aposentei em julho. Foquei em mostrar aos pais como é importante educar as crianças desde o nascimento, mesmo antes da escola. Sinto falta dos meus colegas, dos jovens, mas continuo ativa. Sou próxima da universidade e quero fazer trabalho voluntário lá, e em outro programa para crianças em Charlotte.

Dorothy Counts, 70, educadora infantil, relembra a experiência da tentativa de integração racial nas escolas
Barack Obama

Você não tem ideia de como me senti quando o presidente [Barack] Obama foi eleito. Fiquei tão empolgada! Naquele ano, assisti a todos os debates, li e ouvi tudo que foi dito. E na noite da eleição, decidi que queria ficar sozinha em casa, não ir a nenhuma festa, e esperar os resultados. Fossem quais fossem, queria estar sozinha ao ouvir.

Há 55 anos, não passava pela minha cabeça que eu viveria para ver isso. Não que eu achasse que não pudéssemos, mas é que ele [Obama] é fenomenal, posso ouvi-lo sem parar e vejo nele a mesma paixão e preocupação com as pessoas que eu tenho.

Quando ele ganhou a eleição, pensei que tínhamos de apoiá-lo, porque ele herdou uma bagunça. Eu já dizia que esperava que ninguém achasse que ele ia consertar de uma vez, em quatro anos, o que levou oito para fazer. Espero que as pessoas entendam.

Se acho que esperam mais dele por ele ser o primeiro presidente negro? Com certeza, e acho que isso é parte do porquê [de haver gente frustrada]. Mas é interessante, eu sei que sou negra, e sei que ele é negro, e claro que isso me empolga, porque vi a mudança avançar em vários níveis. Mas também acho que ele era o mais qualificado dos dois candidatos que concorreram em 2008. Agora acho a mesma coisa.

Perdão

[Quanto ao perdão,] só Woody se desculpou comigo.

Saiu uma reportagem a meu respeito no jornal local, e na mesma semana ele tivera uma aula na igreja sobre perdão. Recebi um email do repórter dizendo que tinha uma pessoa tentando entrar em contato comigo, se ele podia dar meu email. Disse ok, e ele [Woody] me escreveu.

Ele pediu perdão, me contou quem era, me disse que se sentia mal e que gostaria de ter intervindo naquele primeiro dia, e não o fez.

Eu levei dias para responder, porque ele foi o primeiro a me pedir perdão. Respondi e continuamos a nos corresponder por seis meses.

Um dia, ele me convidou para ir jantar com ele, a mulher e um rapaz. Nós nos encontramos em um restaurante na cidade onde, naquela época, ele poderia comer e eu, não. Foi lá que jantamos.

Continuamos a nos falar, desenvolvemos uma bela amizade. Ele morreu de câncer no ano passado. A mulher dele me considerava parte da família, assim como ele.

Duas pessoas se desculparam quando passou um documentário sobre a escola, mas não mantivemos contato. Woody foi o único que pediu perdão e de fato sentia. Fomos amigos por quatro anos, e podemos dizer como o perdão é importante.

Na escola, houve só uma menina [que falou comigo]. Ela era nova lá, e se aproximou de mim no segundo dia, que foi o melhor dia. Voltei para casa e disse aos meus pais que ao menos tinha uma amiga. Mas no dia seguinte ela me ignorou. Há uns 30, ela mandou uma carta para uma TV local que fez um programa comigo, para me reencaminharem, pedindo que eu entendesse o que aconteceu. Eu já sabia. Ao se aproximar de mim, ela e a família receberam ameaças, e os pais a mandaram se afastar.

Netos e filhos

Meus cinco netos sabem da minha história. Meu neto mais novo, que nasceu na Tailândia [o filho é diplomata e é casado com uma francesa], viu a foto no jornal e me perguntou porque fizeram aquilo. Ele tinha cinco anos na época, queria saber por que as pessoas foram "malvadas". Hoje, aos nove, ele entende.

Acho que a identidade negra nos EUA está mais evidente hoje do que há 20 ou 30 anos, porque as pessoas temiam que ela se apagasse. Depois da integração, havia alguns negros que achavam que para serem bem-sucedidos não podiam se associar a essa identidade, achavam que tinham de emular os brancos que viam à volta. De uns 30, 20 anos para cá, porém, isso começou a voltar com mais força.

Meus dois filhos são adotados, e ambos são mestiços. É uma coisa que eles tentaram entender desde pequenos, e tentaram buscar com quem se identificar.

Meu irmão pesquisou nossas origens. A minha família é muito misturada. Mesmo assim, sei quem eu sou. Sou negra. Sou uma mulher negra. Sou uma mulher negra e orgulhosa.

Fonte: Jornal Floripa (Atualizada em 09/09/2012 às 11h20min)
Foto 1: Don Sturkey
Foto 2: Luciana Coelho/Folhapress  

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