Engraçado, para não dizer trágico, que a idéia da inocência das ações humanas seja ainda transplantada para o debate político quando tal inocência, em prática, se constitui como uma cortina que esconde, ou visa a esconder, a notoriedade da ordem. Sim, a palavra ordem aqui se encontra vinculada a pelo menos dois sentidos, diferentes, porém não antagônicos: a ordem como disposição organizativa das coisas, ou o contrário do caos, e ordem no sentido imperativo de inferir a alguém um comando.
Em face do primeiro sentido, a idéia da inocência das ações humanas nos mantém confortavelmente neste lugar harmonioso, cujas práticas “ditas” da barbárie pertencem ao desconhecido, ao “outro” e não ao cotidiano que é nosso. Em face do segundo sentido, a idéia de inocência se dá na medida em que confere a um terceiro – mais legítimo – a responsabilidade da ação. É sobre este sentido que me atenho.
Conversando com alguns colegas estudantes sobre a postura dos policiais que nesta terça-feira, 9 de junho, adentraram violentamente o campus da Universidade de São Paulo, diga-se de passagem, a maior e mais conservadora instituição acadêmica do país, ouvi que os policiais, ao jogarem bombas de efeito moral, atirarem balas de borracha contra estudantes, perseguirem lideranças e jogarem bombas de gás lacrimogêneo dentro de um instituto da universidade, não estariam se não, cumprindo uma ordem.
A ordem que ordena a manutenção da ordem.
A idéia recorrente de que os policiais, em situação de conflito, como o que se sucedeu na USP, estariam em primeira instância, cumprindo uma ordem, apresenta-se de forma um tanto quanto falaciosa, na medida em que coloca o pressuposto da inocência da ação, como uma justificativa para a mesma.
Ainda que, seja necessário ponderar sobre a realidade do indivíduo-sujeito que se forja como um policial, numa lógica deliberadamente construída para tal tipo de prática, ou seja, para reagir exatamente como reagiram naquele tipo de situação, não cabe retirar de sua condição primordial de sujeito (no sentido de “estar sujeito há”, mas também de “ser sujeito de”) a faculdade de fazer escolhas e responsabilizar-se por elas.
Ora, se não podemos, já que seria igualmente leviano, dizer que os policiais em si, seriam os responsáveis pelo equivocado desfecho do confronto ocorrido na USP, por outro, não podemos deixar de questionar, no mínimo, afinal, de quem partiu tal ordem?
É de se questionar, portanto, o que disse o governador José Serra (PSDB), autoridade máxima do Estado de São Paulo, logo, última instância política de decisão dos fatos relativos à USP, em entrevista a Folha Online. Segundo ele, nada poderia ter sido feito “se não cumprir a ordem judicial dada por um juiz”.
Diz um antigo ditado popular que no mundo das ordens “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Será que vivemos num estranho e paralelo mundo em que ordem dada é ordem cumprida? Certamente que não. Ao que parece, o discurso da inocência da ação é em primeira instância, o subterfúgio daquele cuja autoridade e poder em mãos é deliberadamente mascarado pela pouca coragem em assumir que tal poder e autoridade demandam escolhas. Eles – tantos os policiais, quanto a reitora Suely Vilela e o governador Serra – fizeram suas escolhas. O governador neste caso, ao velho estilo Pôncio Pilatos: “lavo minhas mãos”.
Desconstruir essa idéia de inocência das ações que são realizadas no cumprimento de uma ordem é tarefa para quem pretende desvelar as escolhas (políticas) que antecedem tais ações. Não é inocente que o governador José Serra – que em 2007 por ocasião da ocupação da reitoria ameaçou permitir a entrada do choque na USP – tenha agora recorrido a tal tática, em comunhão com a direção da Universidade, para impedir que o movimento reivindicatório (ainda insipiente, é fato) tomasse um fôlego maior. Mais uma vez reafirmo: ele fez a escolha (política) dele, cabe a nós fazermos a nossa.
A foto é da Folha Online
quarta-feira, 10 de junho de 2009
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