domingo, 1 de junho de 2008

Abolição inconclusa

No mês em que se comemora 120 da Abolição da Escravatura, o debate de cotas para negros em universidades ganhou enfoque e acabou por refletir um outro debate que deveria ser ainda mais profundo. É possível falar em Abolição da Escravatura no Brasil? Minimamente podemos refletir que, se 120 anos após a assinatura da Lei Áurea, ainda precisamos de argumentos incontrariáveis para defender a criação de políticas de ações afirmativas que garantam a inclusão social do negro, é porque os problemas de exclusão étnico-racial ainda não foram superados. Não foi à toa que o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou em 2007 o PLS 225, que institui o ano de 2008 como "Ano Nacional dos 120 anos de abolição não conclusa”, ainda em tramitação.

Alguns ainda teimam em se questionar se é necessário criar uma política que beneficie ou “favoreça” a população negra num país onde a convivência entre brancos e pretos é pacífica e onde não existe qualquer tipo de desigualdade étnico-racial. São julgamentos que partem de um princípio, já por muitos, criticado, o de que existe uma democracia racial no Brasil. Essa é uma lógica que paira soberana na cabeça de boa parte dos brasileiros e que por ser entendida como uma lógica – algo que não pode ser contrariado – se estabelece como verdade irrefutável. Acontece que nenhuma verdade é absoluta, nenhuma verdade é senão um constructo coletivo, às vezes imposto, às vezes consensuado pela disseminação de um discurso.

Hoje, o mito da democracia racial já foi bastante combatido. Na acadêmica principalmente há quem diga que tal mito tenha sido engavetado. Tenho dúvidas disso, sobretudo, quando ouço declarações como as do geógrafo Demetrio Magnoli. Além disso, sabemos que a universidades públicas importantes, como a Universidade de São Paulo (USP), recusam-se a fazer um debate franco sobre democratização do acesso, democratização de seus espaços internos e até mesmo sobre a democratização do saber, historicamente encastelado. O mito é convidado toda vez que o debate sobre cotas entra em cena.

Muitos críticos do sistema de cotas lançam mão desse mito para afirmar que negros e brancos são iguais no Brasil e que, portanto, reservar vagas seria privilegiar um grupo em detrimento de outro, o que fere nossa Constituição. Outros vão ainda mais longe ao evocarem cinicamente o argumento de que os próprios negros se sentiriam inferiores na universidade por terem ingressado por meio de cotas. Ora, o que eles não percebem é que ao dar vazão a essa idéia, deixam escapar o preconceito arraigado de que negros são realmente inferiores.

No Brasil, o mito da democracia racial foi e continua sendo uma construção discursiva, que se baseia no mito da união das três raças – brancos, negros e indígenas – uma tentativa de se pensar uma nação, ou que seria o povo brasileiro. O que ninguém reflete é que a ascensão ou descenso de qualquer grupo social está ligada intimamente à relação de poder que tal grupo mantém com o Estado. E, no nosso caso, o Estado importado de Portugal era (muito de mais) branco.

Os brancos de ascendência européia dominaram não apenas do ponto de vista econômico – tendo em vista o processo histórico de colonização – mas também do ponto de vista simbólico, na medida em que eram, os intelectuais brancos os principais divulgadores da idéia de democracia racial. E por mais que houvesse no início do século XX teorias sociais que visavam a incluir o negro na “história” do país, essas teorias eram pautadas por ideais de dissolução da cultura negra, de suas crenças, suas manifestações e até mesmo de sua cor escura.

Houve, portanto, um processo de aculturamento do negro, ou como defendiam alguns intelectuais e literatos, um processo civilizatório que criava um modelo idealizado, despido de suas características reais. No fundo, a união das três raças nunca passou de uma ideologia forjada para submeter os negros (e os índios) à supremacia do homem branco. Daí nasce a idéia da mestiçagem, que permitiria uma suposta limpeza biológica da população, na medida em que o cruzamento com a raça branca garantiria a supressão das características negras e indígenas.

O mito da democracia racial acabou garantindo ao longo do século XX uma espécie de unidade nacional. No entanto, tal mito foi construído sobre a completa marginalização do povo negro, ainda que isso tenha sido feito com cinismo, na medida em que, após a libertação dos escravos nenhuma política de inclusão social do negro foi realizada pelo Estado brasileiro, ao contrário, a política eugênica proposta foi a da imigração dos brancos, sobretudo, alemães e italianos, para construir o país do futuro.

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Basta um olhar atento sobre as produções midiáticas do dia-a-dia para se perceber o quanto ainda temos incrustado em nosso imaginário a idéia de igualdade entre brancos e pretos. A novela “Duas Caras” que terminou hoje, dia 31 de maio, na TV Globo, mostrou às avessas o processo de “igualamento” entre os dois grupos. Afinal, se brancos passaram anos discriminando negros, por que afinal, os negros não podem discriminar os brancos? Parece que a novela tentou passar como resposta plausível o fato de que brancos e negros se discriminam mutuamente, logo o problema do racismo é igual para todos. Esse seria um debate contemporâneo se o “lugar” do discurso não fosse o Brasil e o “meio” não fosse a TV Globo, que, aliás, mostrou em capítulo da mesma novela, a jovem negra Gislaine (foto) lendo o livro “Não somos racistas”, escrito por ninguém menos do que Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede. Sendo essa ou não a intenção do autor Agnaldo Silva, o fato é que a mensagem passada pela novela, por fim, acaba repaginando o mito da democracia racial.

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