Alguns ainda teimam em se questionar se é necessário criar uma política que beneficie ou “favoreça” a população negra num país onde a convivência entre brancos e pretos é pacífica e onde não existe qualquer tipo de desigualdade étnico-racial. São julgamentos que partem de um princípio, já por muitos, criticado, o de que existe uma democracia racial no Brasil. Essa é uma lógica que paira soberana na cabeça de boa parte dos brasileiros e que por ser entendida como uma lógica – algo que não pode ser contrariado – se estabelece como verdade irrefutável. Acontece que nenhuma verdade é absoluta, nenhuma verdade é senão um constructo coletivo, às vezes imposto, às vezes consensuado pela disseminação de um discurso.

Muitos críticos do sistema de cotas lançam mão desse mito para afirmar que negros e brancos são iguais no Brasil e que, portanto, reservar vagas seria privilegiar um grupo em detrimento de outro, o que fere nossa Constituição. Outros vão ainda mais longe ao evocarem cinicamente o argumento de que os próprios negros se sentiriam inferiores na universidade por terem ingressado por meio de cotas. Ora, o que eles não percebem é que ao dar vazão a essa idéia, deixam escapar o preconceito arraigado de que negros são realmente inferiores.
No Brasil, o mito da democracia racial foi e continua sendo uma construção discursiva, que se baseia no mito da união das três raças – brancos, negros e indígenas – uma tentativa de se pensar uma nação, ou que seria o povo brasileiro. O que ninguém reflete é que a ascensão ou descenso de qualquer grupo social está ligada intimamente à relação de poder que tal grupo mantém com o Estado. E, no nosso caso, o Estado importado de Portugal era (muito de mais) branco.
Os brancos de ascendência européia dominaram não apenas do ponto de vista econômico – tendo em vista o processo histórico de colonização – mas também do ponto de vista simbólico, na medida em que eram, os intelectuais brancos os principais divulgadores da idéia de democracia racial. E por mais que houvesse no início do século XX teorias sociais que visavam a incluir o negro na “história” do país, essas teorias eram pautadas por ideais de dissolução da cultura negra, de suas crenças, suas manifestações e até mesmo de sua cor escura.
Houve, portanto, um processo de aculturamento do negro, ou como defendiam alguns intelectuais e literatos, um processo civilizatório que criava um modelo idealizado, despido de suas características reais. No fundo, a união das três raças nunca passou de uma ideologia forjada para submeter os negros (e os índios) à supremacia do homem branco. Daí nasce a idéia da mestiçagem, que permitiria uma suposta limpeza biológica da população, na medida em que o cruzamento com a raça branca garantiria a supressão das características negras e indígenas.
O mito da democracia racial acabou garantindo ao longo do século XX uma espécie de unidade nacional. No entanto, tal mito foi construído sobre a completa marginalização do povo negro, ainda que isso tenha sido feito com cinismo, na medida em que, após a libertação dos escravos nenhuma política de inclusão social do negro foi realizada pelo Estado brasileiro, ao contrário, a política eugênica proposta foi a da imigração dos brancos, sobretudo, alemães e italianos, para construir o país do futuro.
*********************
