Palestra de Alice Walker*, no Spelman College, Atlanta
Alice Walker é autora do belíssimo romance A Cor Púrpura, posteriormente adaptado ao cinema por Steven Spielberg. (Foto: Reprodução) |
Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade,
há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o
pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia
dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que
sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo,
quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês,
hoje.
Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez
até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo
ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres. Nem
sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a
preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto
de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o estado dos seus cabelos
neste momento.
Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação.
Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo
cabelo, e espero entreter e divertir a todos.
Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a
idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o
espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos
do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de
crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou
deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou
uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento
espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o
peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar
numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais
desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de
ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se
manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu
ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.
Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em
saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um
pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos, quando
algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber
qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados,
pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparados para a
próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de
personalidade.
Alguns anos atrás passei por um longo período de
inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a
favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e
dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande
família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado a um teto no
meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora
tudo em mim estivesse calmo.
Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as
contas do meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os
antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu
trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era
exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente,
eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também,
finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c minha
adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu
meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos
outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava
agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho
que eu costumava trilhar, estivesse selado?
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta
durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira
para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele
era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu
estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso
para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o
ancoraria à Terra.
Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!
Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!
Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha
conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.
Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei
longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo
de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos
longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a
oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu
acabei adorando – uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa
às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos,
enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o
artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de
cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu
adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe
e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu
adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as “extensões”, coma
eram chamadas as tranças.
Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente
original e que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o
fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou
três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se
quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de
ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais
sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de
acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente
para vender. É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar)
sobre os outros aspectos de suas vidas.
Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento,
dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei
o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível,
macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças
girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri
que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo,
tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava
dele.
Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e
comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis,
surpreendentes, de parar o tráfego – um pouco parecido com as listras das
zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão – que o
universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação
ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em
sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza
própria. Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros – desde o
tempo de minha mãe – que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. Eles
dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo
espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para
relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado.
Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar
curto, cortado quase até a raiz, outra “solução” missionária, também não o
interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era tudo.
Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria
crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser
deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era.
O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus
adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que
era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu
espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade
inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.
Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo
ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas
criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é
dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer
pelo menos um momento de prazer.
*Alice Walker é escritora e ativista